18.7.06

Barba crescendo em pensamento...

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legitima defesa - e qual defesa seria mais legitima? - logrei ser absorvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.
Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites esiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.
A primeira mulher que possuí foi sob uma ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe a vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinha sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.


Walter Campos de Carvalho . 1916-1998 - texto extraído da Revista Azougue 10 Anos.

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nada do que é (d)escrito aqui tem como intuito o de estabelecer alguma verdade, universal ou mesmo subjetiva, mas antes expressar seus impulsos e (de)formações, para que posteriormente possa re-ver seus caminhos de (re)construção e de fuga, tal como os traços desenvolvidos e esquecidos. Para experimentar é preciso não ser.